quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Todo o Mundo e Ninguém

Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:

Ninguém: Que andas tu aí buscando?
Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:delas não posso achar, porém ando porfiandopor quão bom é porfiar.
Ninguém:Como hás nome, cavaleiro?
Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo e meu tempo todo inteiro sempre é buscar dinheiro e sempre nisto me fundo.
Ninguém:Eu hei nome Ninguém, e busco a consciência.
Belzebu: Esta é boa experiência:Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que escreverei, companheiro?
Belzebu:Que ninguém busca consciência. e todo o mundo dinheiro.
Ninguém:E agora que buscas lá?
Todo o Mundo:Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu virtude, que Deus mande que tope com ela já.
Belzebu: Outra adição nos acude:escreve logo aí, a fundo,que busca honra todo o mundo e ninguém busca virtude.
Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse?
Todo o Mundo: Busco mais quem me louvassetudo quanto eu fizesse.
Ninguém: E eu quem me repreendesse em cada cousa que errasse.
Belzebu: Escreve mais.
Dinato: Que tens sabido?
Belzebu: Que quer em extremo gradotodo o mundo ser louvado, e ninguém ser repreendido.
Ninguém: Buscas mais, amigo meu?
Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.
Ninguém: A vida não sei que é, a morte conheço eu.
Belzebu: Escreve lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Belzebu:Muito garrida:Todo o mundo busca a vida e ninguém conhece a morte.
Todo o Mundo: E mais queria o paraíso, sem mo ninguém estorvar.
Ninguém: E eu ponho-me a pagar quanto devo para isso.
Belzebu: Escreve com muito aviso.
Dinato: Que escreverei?
Belzebu: Escreve que todo o mundo quer paraísoe ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar, e mentir nasceu comigo.
Ninguém: Eu sempre verdade digosem nunca me desviar.
Belzebu: Ora escreve lá, compadre,não sejas tu preguiçoso.
Dinato: Quê?
Belzebu: Que todo o mundo é mentiroso, E ninguém diz a verdade.
Ninguém: Que mais buscas?
Todo o Mundo: Lisonjear.
Ninguém: Eu sou todo desengano.
Belzebu: Escreve, ande lá, mano.
Dinato: Que me mandas assentar?
Belzebu: Põe aí mui declarado, não te fique no tinteiro:Todo o mundo é lisonjeiro, e ninguém desenganado.

Gil Vicente - Auto da Lusitania

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